mais cedo ou mais tarde, todos sentimos um desconforto. por estupidez, acomodamo-nos. só voluntariamente o podemos interromper

fevereiro 24, 2006

[30] dixit .3.


Divagações Quanto a Futuro

Prof. Agostinho da Silva

Revista de Educação, Número 2, Volume 1 (1987), pp 102.



A Sétima Idade de Fernão Lopes, o Reino do Espírito Santo de nosso Povo, a Ilha dos Amores de Camões, o Quinto Império de Vieira e o Sacrifício da vida pela Vida, que é esta a grande biografia de Pessoa - tudo é isto sob o ponto de vista prático, de cuidado, a um tempo, pelo quotidiano e pelo futuro, o desejo que temos nós e connosco toda a humanidade, apenas em parte distraída pelo que ainda é preciso construir, em parte, como em muita África, muita América Latina, muita Ásia, por uma quieta espera o que fatalmente há-de chegar - tudo isto é, ia eu dizendo, o apetite de que o mundo, cuja massa vem da garganta de Olduvai, levedada pelo sentido egípcio do além-mundo, pela filosofia grega, mais de perguntar do que de responder, e é isto filosofia, pela burocracia e rede de estradas dos romanos e pelos laços de audácia, saber e desvergonha com que Portugal atou o globo e o pôs em seu regaço, que a massa do mundo, pois, se renove e finalmente ofereça às fomes de espírito e aos apetites de corpo o pão, nutritivo, abundante e alegre que todos queremos.


Acho que para tal se tornava necessária nova levedura - e ela aí está em nossa gamela para que a empreguemos com científico cuidado, bom governo de casa e confiança em que a disputará a freguesia: chama-se desemprego e já a palavra se usa só por hábito do que havia porque, na realidade, não há desempregados: o que existe cada vez menos, e a carência só pode aumentar por maiores que sejam as promessas de governantes, é emprego.


Coisa curiosíssima, a nossa economia que toda é de capitalismo, só que dum lado mono, do outro pluri-capitalista e que avançou na técnica sempre no afan de produzir mais e mais, até hoje cercada pelos excessos e enjoada pelo supérfluo, se precipitou numa situação de que só pode sair pela eliminação física desses primeiros homens de tempo livre, dessa amostra da humanidade do criador, poético ócio, e a isto se oporiam naturalmente todos os humanitários, mesmo que, por prudência, se declaram apenas humanistas, ou então, não querendo matar os tais desempregados, por mudanças radicais na economia, na instrução ou sistema escolar, que raramente é educativo, e na organização política.


Quanto à primeira, tudo é muito simples de enunciar, mas de muito longa e difícil execução: trata-se de estabelecer uma economia de distribuir quando tudo se tem empenhado, e muito bem, na tarefa de produzir; tem de se dar comida, não de vender comida, tem de se abrir casa, não de se alugar casa, tem de se curar de graça, não de exigir honorários médicos, diárias de hospital e de a cada passo aumentar o preço das pílulas; cobrar e lucrar têm de ser verbos arcaicos; e prever, dar e amar passarão, esses, a ser verbos que não brilhem apenas nas biografias dos santos. E quero eu ver o tempo que tal vai consumir quando todos somos condicionados para o contrário, para o ganho e o depósito no banco, para, às vezes, a escassa esmola, que ainda tomamos como virtude, sendo que santo, no melhor dos casos, é para se lhe rezarem, não para o imitarem.


Pelo que respeita à tal instrução, tudo começa pelo pitoresco de serem todas as escolas de formação profissional quando o que vem aí é o desaparecimento das profissões; como devem para cumprir o seu papel de formarem profissionais dão as nossas escolas de hoje atenção bem pequena ao que pode ser alimento ou técnica para que se exprima a capacidade criadora do aluno, quando a verdade é que todos nós nascemos poetas, ou do verso ou da pintura, ou da relação humana, ou da matemática, ou da mística, ou da carpintaria, ou da vagabundagem para conhecermos a terra, ou de nos estirarmos de costas para contemplar o grande céu sobre nós. Acontece por outro lado, e como se sabe há séculos, que nem só de pão vive o homem o que é confirmado pela alta taxa de mortalidade dos reformados, mesmo que tenham boas pensões, vai ser preciso que haja ensino, mas a pedido do freguês, porque também acabará a escolaridade obrigatória, que só se compreendia quando a nossa vida foi de serviço civil muito parecido com o militar com todo o risco de vida e muito mais tempo de quartel. E já é um excelente sinal que entre nós esteja pensando o Governo em estabelecer escolas-cultura em que, a par do currículo adoptado, possam os alunos juntar-se em grupos interessados nesta ou naquela actividade de criação artística, pesquisa científica, observação sociológica ou até aventura metafísica não vão os adultos julgar que têm para ela mais capacidade do que criança; antes iria eu pelo contrário.


Resta o que se refere a política. Se a sociedade vai ser, quando livre da escravidão de produzir, com a produção a cargo dos amadores ou por classes chamadas à produção como hoje se recrutam para as forças armadas, fraternidade de poetas à solta, penso que não haverá necessidade de os mandar a isto ou aquilo, de os limitar de algum modo em seus movimentos, de os prender em artigos de código cujo conteúdo é afinal só de sinais de tráfico, mas com, em geral, tão confusas luzes que nem o mais esperto e treinado olhar é capaz de se desembaraçar sem atropelos nem choques, voltaríamos à grande política medieval portuguesa de haver um poder central mais de coordenação do que de mando, dele se tendo o país afastado para que a empresa dos descobrimentos se pudesse realizar. Talvez então os grandes descobrimentos que há a fazer para o futuro e que levem a construir céu na terra ou a, dentro de cada um, não distinguir entre céu e terra, partam de uma base de pura iniciativa individual, sem dirigentes governamentais, sem programas a cumprir, no pleno amor da liberdade; e liberdade no amor, claro está.

[Olga Pombo: opombo@fc.ul.pt]

fevereiro 22, 2006

[29] .5. (re)começo .2.

.../

[...]
Ontem, ao jantar, a discussão circulou sobre os recomeços. Parece moda incentivar recomeços. Mas sabes a que conclusão cheguei, pelo meu raciocínio? Que esse incentivo perde o seu bom propósito, porque apenas justifica as desistências. É. As desistências ficam justificadas por quem se sente livre para recomeços, como se, ao recomeçar, ficassem saldadas todas as contas atrasadas - o que faz diminuir a responsabilidade sobre tudo o que se fez. A redenção pelo renascimento. Bah! De que serve poder recomeçar se é para a seguir se repetir tudo, de novo erradamente? O que torna esse recomeço diferente da desistência do anterior? A mudança de personagens?
É tudo tão efémero, de facto. Pouco se evoluiu em relações humanas. E a arte há-de sempre representar essa grafia e a libertação do real, simultaneamente. A fuga para a frente. É libertário?
[...]
/...

[28] .5. (re)começo

"Não me recordo da última vez."
Será assim a génese do começo? Uma voz interior que não soa nunca?
~~~
Um recomeço lembra nova etapa, mas também desistência.
Tornou-se fácil aderir a recomeços. (Ah! Como odeio toda a filosofia que vem apensa aos recomeços!) E há uma imensidão de vozes apoiantes que julgam minorar a decepção anterior e sobrevalorizar qualquer coisa que confundem com coragem que julgam ver demonstrada nessa atitude.
Para mim, uma desistência é um ciclo fechado, levado ao limite, esgotadas as tentativas; não uma desistência desistência.
É por isso que com relutância agrupo desistência e recomeço na mesma semântica. Porque uma leva a outra, quase irremediavelmente, numa relação de causa e consequência.
~~~
"Já não dava."
Será esta a justificação mais banalizada? Sendo a mais comum, é aceitável?
~~~
/...

fevereiro 20, 2006

[27] dixit .2.



(...)

Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
(...)


Sérgio Godinho

fevereiro 19, 2006

[26] Lucy in the sky with diamonds...







- A Lucy mudou-se p'ra outro condomínio...
- Como não é filha de pais ricos, achas que pediu ao BES?

[25] a cada um a sua medida


- Sabes, a partir dos trinta não se sente nada o tempo a passar... porque se colam os anos e não sentimos em nós alterações. Quem nos olha é que nos julga. Na passada sexta-feira, jantei com dois amigos de idades diferentes da minha (quarenta e três); eles, trinta e quatro e vinte e oito. A conversa é tão sem idade, sabes?
- Claro! Há quem seja velho aos vinte e dois.
- Isso. Mas vais encontrar quem te olhe achando-te um senhor e tu vais rir por dentro.
- E por fora também. E essas tuas jantaradas, são animadas?
- Umas, são; outras, mais calmas. Depende das turmas. Há uma coisa engraçada que acontece com o passar dos anos: eu defendo que a inocência se ganha, ao invés de se perder... Por isso, cada vez é mais interessante estar com pessoas, porque me sinto confortavelmente quando nua.
- Como assim?
- A naturalidade desarma poses, sabes? E as pessoas quando estão naturalmente desguarnecidas de defesas, são tão mais interessantes... A simplicidade é o mais alto grau de sofisticação, dizia Da Vinci. Dá que pensar... Acresce uma outra vantagem: se te apresentares desguarnecido e vulnerável reduzes substancialmente a vontade do outro te prejudicar.
- Há quem pense o contrário: que está mais desprotegido.
- A arte de viver... aprende-se.
- Achas que é mais fácil agora do que quando eramos mais novos?
- Sim. Não duvides. É uma questão de alterar estratégias: não as usar!
- Que estranho. A mim parece-me sempre mais difícil.
- Será, por acaso, uma adaptação? Ou terá que ver com a tua maneira de ser?
- Não sei. Acho que talvez seja a relutância da falta de tempo.
- Deixa pra lá... sou eu que sou assim mesmo. Mas, falta de tempo? Usar de estratégias é usar muito mais tempo.
- Passo tempo demais a trabalhar.
- Dei-me tréguas de falta de tempo... suspendi a minha actividade, pela pura e simples razão de achar que mereço tempo. Na maior parte dos casos, as pessoas não abdicam de um certo status adquirido... Sei que poucos se atreveríam a fazer como eu faço, mas a vida é feita de escolhas. Mas esses balanços de vida penso que se dão por fases e nas idades próprias. Cada um tem que encontrar a sua medida e dispensar amarras desnecessárias... Mas isso, só o tempo ensina. Por isso, se sentes falta de tempo, reavalia-o e reestrutura-o.
Assim tem sido a minha vida: reorganizar espaço e tempo.

fevereiro 15, 2006

[24] a importância de se chamar...


- Bom dia, menina... Desculpe. Queria dizer o seu nome mas não me lembrei logo. João, não é?
- Sim. Bom dia.
- Desculpe me meter, como é mesmo seu nome? Maria João, é isso?
- Sim. Para um brasileiro é meio estranho, não é? Sei que Maria José existe.
- É. Mas Maria João, não. Aqui, com você, já conheci cinco. Agora já começo a nem reparar - sorri. - Quer saber? Meu avô... meu avô, não, meu bisavô se chamava João Abel de Oliveira. Era português. Minha bisavó, italiana. Taí, emigraram pro Brasil. Sabe como é que é.
E o gaúcho pequenino sorria, sobranceiro; orgulhoso da sua ascendência de árvore oleaginosa, cuja tonalidade azeitona persistia nos traços, agora mesclados pela diáspora da esperança do mata-fome.
- Ainda tem tabaco a preço antigo? Diga-me lá o que há.
- Olhe, menina João, esta prateleira ainda é toda a preço antigo.
- Ai que bom! Dê-me então dois desses azuis, se faz favor.
- Isto é uma vergonha! Em Espanha são todos a menos um euro!
- E a gasolina também! - acrescentava o brasileiro, que não queria arredar-se da conversa. - E a maior parte vai para o imposto! - E dirigia-me o olhar, à espera que eu continuasse. Apenas sorri, aquele sorriso de anuência, educado mas distante, e preparei-me para pagar.
- Então, muito bom dia.
- Olhe, menina Maria João, foi um prazer conhecer você. Sabe? Meu nome é Jacob. Em italiano é Jacomo.
- Aqui está à vontade porque também é Jacob - sorri.
- É. Mas aqui me disseram que é nome de papagaio.



fevereiro 13, 2006

[23] história morta


As histórias mortas são pano fácil de cortar, preferencialmente quando restaram poucas testemunhas vivas que as possam refutar. Eu, teço as histórias vivas. Tu, desempenhas como sabes a testemunha morta - distorcemos por inteiro a directiva.
Fá-lo tão na perfeição que me passeio à tua frente como se fosses uma estátua enraízada no chão da sala e eu um turista acidental.
Se não perguntas nada é por achares tão desnecessário um diálogo entre nós como usar um chapéu de abas num funeral. Também, não preciso nada dizer. Assim, poupas-me àquela espécie de rodopio falante que lembra pessoas com coisas por dentro, e íamos errar o desempenho; as nossas humanidades contraem-se nos esgares de três minutos, quando embrulhamos pele e cio e nos saem aqueles grunhidos guturais de bicho a arfar. Para ser honesto, tinha que te deixar, e, estou tão cansado de nós que não teria forças para o the end da história morta, Helena. Viver sem ti é tão já isto que julgo deter-me na esperança que morra a última testemunha viva para poder acreditar.
...


Photo: Marta Glinska

fevereiro 03, 2006

[22] o coleccionador




Descobri-me no meio dos teus objectos quando te surpreendi a quereres mudar-me o estofo dos sofás, as cortinas do quarto e o jogo de pratos - propositadamente de cores sortidas - que tenho a uso na cozinha. De início, achei-te criativo e, à ideia, um revigorante renovar de ambiente. Vim a comprovar mais tarde que eras completamente destituído de imaginação. Esses teus assomos de mudança eram afinal recuos ao estereótipo que conhecias, sem o que não te sentirias confortável.
Hábil nas escolhas, à tua estética antecipei a minha - desculpa dizer-te agora, mas em todas as cores há casamentos felizes, desde que saibas harmonizar volumetrias e protagonismo.
Quis dar-te tempo para que desabrochasses em sensibilidades que não tinhas. Sempre se têm capacidades em potência que são despertas por estímulos vários - pensava -, mas nisso eras afinal limitado. Mestre no manejo do que conhecias, mas pouco afoito à aventura da descoberta.
Foi rápido começarmos a estreitar o tempo que partilhávamos. Rápida, também, a velocidade a que nos fomos afastando. Decididamente, eras tu quem destoava por entre os meus objectos.
Hoje, lembro-me de ti quando reparo que, por preguiça, ainda não me desfiz do orelhas de couro de vitela com que insististe personalizar o melhor ângulo de luz da sala. Tenho que o despir da manta de xadrez multicolorida com que o encubro, a ver se me lembro de me livrar de ti de vez aqui de casa.