mais cedo ou mais tarde, todos sentimos um desconforto. por estupidez, acomodamo-nos. só voluntariamente o podemos interromper

abril 17, 2006

[35] .6. como outra coisa qualquer






É mesmo assim. Só há um vaivém delicioso: o das nossas coxas na fusão, a construir tempo; a destruir adiamento. No mais, o espiralado do eterno retorno já me enjoa. Os ciclos e tal, as estações, a tal da esperança que alimenta os homens, o sonho que é uma constante da vida - tão concreta e indefinida como outra coisa qualquer... Já reparaste que se vende optimismo em doses extra a quem nem sonha como é ser-se assim por dentro? Sabem lá sentir-se bem sem terem que lhe achar motivo!? A coisa inacta que ignicia o sorriso é tão malamada quanto vista como demente! Mas os tristes recomendam a outros, a quem crêem mais tristes, que é preciso o riso, a positividade, o optimismo. Só se for reconhecido como terapia parece coisa de ciso; se for inacto, é coisa de loucura - não se lhe acha sentido.
A minha força não me vem dos ciclos, não é reactivada pelo espiralado do retorno! Recuso a coisa que se explica naquele nível de competência que nos liga à Natureza num axioma umbilical. O meu bicho, sabe do bicho, ri desse bicho, ri como um bicho riria se discernisse o bicho. Isso é quanto me basta. De facto, tão concreto e indefinido como outra coisa qualquer.

abril 06, 2006

[34] A vestal de pés de barro




A melhor comunicação, ninguém a escuta. Usamos palavras; cruzamos palavras. Entre frases, simples ou complexas, há um universo que mais se adivinha do que se concretiza. Se dependermos da vontade e do acaso, fica incompleta a corrente e substituída a interpretação pela adivinhação. Então, para os romancistas, aqueles que não dispensam a elaboração de um personagem, começa a tarefa do embelezamento. Necessitam de se preencher de Beleza, de harmonia, do irrecusável frisson do Mistério. Avançam na sacro-santa via da efabulação e ao menor trejeito, ao menor esgar de sintonia, sobre-elevam as emoções e nivelam-nas a um patamar de carência, imaginário mas rapidamente transformado em real. O outro assume o papel do objecto do desejo e não o desempenha senão figurativamente dentro daquele guião do imaginário. Assim, existem múltiplas criaturas a circularem através de descrições que passam a conferir-lhes estatuto de reais, quando basicamente não passam de elementos fantasiados. Ao menor estilhaçar da magia do seu criador, o efeito hipnótico estala devolvendo ao romancista o barro inicial, porém, já maculado, manchado pelas próprias mãos do seu desejo. E o seu desejo de Beleza devolve-o, mais do que à sua decepção, ao fracasso da sua má dramaturgia. Zanga-se o criador com a carência que lhe exacerbou o desejo.
Perigosas, as mentes que buscam fora de si o que dentro têm, quando a Beleza reside em ver em si o que lá não está; não em inventar no outro o que ao outro falta.