mais cedo ou mais tarde, todos sentimos um desconforto. por estupidez, acomodamo-nos. só voluntariamente o podemos interromper

abril 28, 2008

[48] dixit .10. o meu pior inimigo esconde-se na minha cabeça


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Quando não estão a rir-se de mim, as pessoas ignoram-me e agem como se eu aqui não estivesse. Por isso me é permitido observar os amores clandestinos, os gestos furtivos, os corpos abandonados ao cansaço, os homens que vêm fumar ao relento para meditar olhando as estrelas e o relâmpago de morte que, às vezes, atravessa os olhares, mesmo os olhares daqueles que enganam a morte com sorrisos alvíssimos e absolutos. Aqui onde estou, debaixo do meu cobertor, vejo sem ser visto ou, pelo menos, sem que aqueles que eu observo possam ter a certeza se eu os vejo ou não. Isto, parece-me, constitui um modo radical de liberdade e diverte-me sinceramente este jogo que vamos praticando: umas vezes estou a ver o que fazem e a ouvir o que dizem, outras vezes ignoro-os e concentro-me na leitura metódica dos livros da velha biblioteca que arrematei num leilão antes de partir para a ilha.
Quando termino uma pilha de livros, chamo uma das crianças que brincam com a espuma das ondas e ofereço-lhe os volumes para que faça deles o que quiser. Apenas exijo que vão lá acima, à casa do monte, e me tragam mais livros. Preciso absolutamente de continuar a ler (pelo menos enquanto é dia e posso enxergar alguma coisa), sobretudo agora que consegui desaparecer e chego a beneficiar de uma espécie de silêncio.
As noites, porém, são difíceis. Não posso ler e a voz enlouquecida que se alojou dentro de mim insiste em modificar-me com conselhos lúgubres e ideias extravagantes, coisas em que homem nenhum devia pensar. Eu luto contra essa voz, tento resistir-lhe e aplacá-la com o sono, mas tenho dormido pouco e mal. Conto carneiros e fecho os olhos com força, desejando que a manhã chegue depressa e, com ela, a luz que me permite ler e escrever. Desapareci, sim, sou praticamente o zero à esquerda que pretendi ser, e agora tenho todo o tempo do mundo. Mas só nos livros encontro o caminho que me leva para longe do meu pior inimigo: aquele que se esconde na minha cabeça.

in 'Zero à Esquerda', Manuel Jorge Marmelo
O Prazer da Leitura, ed conjunta FNAC/ TEOREMA, Lisboa, 23 Abril 2008

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