mais cedo ou mais tarde, todos sentimos um desconforto. por estupidez, acomodamo-nos. só voluntariamente o podemos interromper

janeiro 19, 2006

[15] desconstrução

Encontrei isto dentro de um poema
Estava deslocado
Sem nenhum sentido estar ali ao lado
Das palavras quentes
Dos sonhos latentes
Parecia gralha dentro de um morfema
Encontrei isto dentro de um poema
Estava desfocado
Quase lhe tocava, mesmo ali ao lado
Parecia halo, até dava pena
Encontrei isto dentro de um poema
Estava transviado
Pertence-te agora, já podes guardá-lo
Poderá um dia dar novo poema



Encontrei isto dentro de um poema
Estava deslocado
Sem nenhum sentido estar ali ao lado
Das palavras quentes
Dos sonhos latentes
Parecia gralha dentro de um morfema

[esta seria uma estrofe principal, caso não estivesse pegada às restantes. é a partir desta que as outras ganham forma; como se apenas servissem para desdobrar a ideia]

o redondo começa pela repetição do verso:
Encontrei isto dentro de um poema
até o modo de construção se repete, como quem explica, ou esclarece

a seguir, se houvesse estrofes, seriam assim:
2
[Encontrei isto dentro de um poema
Estava desfocado
Quase lhe tocava, mesmo ali ao lado
Parecia halo, até dava pena ]
3
[Encontrei isto dentro de um poema
Estava transviado
Pertence-te agora, já podes guardá-lo
Poderá um dia dar novo poema ]

ou seja: 2 quadras, ambas certas entre si, mas desconfiguradas da 1ª, por isso que a 1ª é a mais importante. as seguintes são o desenvolvimento e terminam na conclusão: os 2 versos finais

depois, tens outra particularidade: repara no que é repetido, para além do verso de abertura, que se repete nas 2 outras estrofes, como que a abrir.
tens o "estar ali ao lado" e o "mesmo ali ao lado"

o poema é redondo porque termina com a palavra 'poema', como se apenas se suspendesse e afinal não houvesse conclusão. o próprio último verso deixa a hipótese em aberto "poderá um dia (condicional) dar novo (renovar-se/ ser reaproveitado) poema"

outra particularidade:
Estava deslocado
Estava desfocado
Estava transviado

(a necessidade da partição em 3 é significativa, pois, como na tríade hegeliana (tese/ antítese/ síntese) há uma estrutura perfeita de unidade no nº3, como em princípio/ meio/ fim) etc

logo.... aquele poema, adicionando-lhe a interpretação, é um ritual de fechamento (pelo 3, pela entrega/ devolução, pelo redondo da forma. a união das 3 estrofes foi propositada, para que ficasse unido o poema num todo, como se fosse oferecido com as mãos em concha)

conclusão/ interpretação:
encontrei isto (não se sabe o quê, mas por certo algo de bom que já não serve, que sobra), mas que não fica bem ao lado desta outra coisa (palavras quentes/ sonhos latentes). «por isso, toma e que te faça bom proveito... que pode ainda vir a servir-te para alguma coisa».

claro que este poema tem vida própria e poderá ser lido como bem se entender. dependerá sempre daquilo que ali se quiser ver, pois do ponto de vista da autonomia (desde que algo é dado ao mundo, deixa de ser pertença do seu obreiro) a obra pertence a quem a lê. esteticamente, está apoiado na rima, porque ali a rima é importante; a rima marca um ritmo propositado de paragem em certos sons.

por isso que a mensagem - sendo o mais importante - será? - tem que estar estruturada sobre uma construção. senão, seria um desabafo e não um poema.

por isso eu digo que muita gente escreve sentimentos, desabafos, lamechices, mas nota-se pela estrutura que não foi 'obra'/ poema/ texto acabado (pintura). às vezes fica-se pela ideia de uma coisa que se quer dizer mas não se trabalha a arte de a mostrar.

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