mais cedo ou mais tarde, todos sentimos um desconforto. por estupidez, acomodamo-nos. só voluntariamente o podemos interromper

janeiro 06, 2006

[6] .1. aros de fotos


Dificilmente se esquece, embora a memória não seja a única responsável pelas lembranças. O acto de recordar encarrega-se de limpar imagens e de limar arestas, como o faz o visionador de takes na fase de montagem de um filme.

Já tenho pensado em escrever sobre aqueles segundos excedentes de película que não são aproveitados; aqueles que se eliminam como quem corta o que ficou desenquadrado numa fotografia mal tirada. Porque é assim que a memória desvaloriza os imensos segundos da nossa vida que acabamos por não achar dignos de relevância.
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Concentro-me e rapidamente elejo um ao acaso:
um escape solto de uma mota que suja o silêncio. obriga-me a mover os olhos, acompanhando paralelamente o som que se desloca. embora não o veja. O roçagar da dobra da roupa ao mexer-me na cama. o lençol a deslizar sobre o rosto acrescenta um outro som, menor. embora mais perto dos ouvidos, mas mais distante da atenção.
Quanto tempo terá este momento durado?
De que pensamentos me terão estes segundos distraído?
Em que posição nos colocaram, a mim e à mota, relativamente à relação espaço-tempo do universo?
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Pequeno. tão pequeno aquele quarto em que eu dormia. A cama encostada a uma parede e eu, deitada de lado. as costas abrigadas pelo ângulo que as duas paredes formavam. olhos fechados, virados para a janela. filtrada, uma mancha de luz que as pálpebras encobriam. A porta. a uma nesga de fechada. apenas o ar podia entrar. Havia noites em que levava o rádio para a cama. deixava-o a tocar baixinho até me deixar adormecer. Tantas vezes. adormecia sem dar por isso. e ele ficava toda a noite a tocar. De manhã, quando os sons enchem o silêncio. quando achamos estarmos ainda em silêncio. dava por ele ligado. quase inaudível.
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Detenho-me sobre a importância das coisas sem importância; aquelas que não recordamos - que só são marcantes se as enquadrarmos numa história. São esses os aros dispensáveis que rejeitamos das recordações. Com eles, só com esses, tenho enchido de significado preciosos segundos das minhas inúmeras vidas.

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